Na colina, Caim ficou a esperar. Nalgum momento avistaria Abel e seu rebanho. A cantilena da flauta seria audível a poucos metros, suficiente sinal para que Caim pudesse se preparar para a batalha. O batimento cardíaco estava acelerado, suas mãos tremiam levemente e o plano, metodicamente estudado durante dias de inveja, algo não muito sofiscatido, uma pedrada na nuca, a colina era farta de pedras soltas, se embaralhava com o desejo pela mãe. A loucura é a sanidade declarada de alguém que justifica a si mesmo como um conceito absoluto. A dúvida não está no radar de Caim e a convicção sólida de que matar era a melhor maneira de lhe dar com o conflito, era sua bandeira, drapejada pela rudeza.
Abel guiava seu rebanho por um caminho vicinal ao norte da colina. Tinha preferência por locais próximos a riachos para que cada ovelha saciasse a sede. Diligente, limpava os animais dos carrapichos que impregnavam as patas ao atravessarem os campos. Sempre mantinha o cajado a mão direita, atento aos coiotes. Apesar da vigilância em boa parte do tempo, o sono fazia com que Abel perdesse algumas ovelhas para os astutos predadores, o que o deixava melancólico por dias. Antes de subir a colina, começou a tocar uma melodia alegre a frente do rebanho. O cântico de seu funeral.
– Caim. Como vai irmão?
– Normal. O que é isso?
– É um instrumento do Senhor. Assopro e ouço vida. O que faz aqui?
– Nada. E você?
– Aquele rebanho não indica resposta?
– Poderia estar fazendo outra coisa sem mexer no rebanho.
– Tenho responsabilidade irmão. O Senhor a me deu.
– Por que tanto Senhor?
– Quê?
– Por que você fala tanto Nele?
– Porque sim. O incômodo é seu irmão, não meu.
– Vim à essa colina sentir o vento.
– Poderia ter respondido isso na primeira vez que perguntei.
– Quis responder agora. O incomodo é seu também.
– Poderíamos ser irmãos ao menos uma vez.
– Não tenho interesse.
– Você é muito bonito para ter amargura no coração, Caim.
Abel toca de leve o ombro do irmão e sorri. Caim o fita com desprezo, menor que a minhoca que ele despedaça com a enxada. Antes de prosseguir, Abel fala, mas sem olhar o irmão:
– Teus olhos revelam desejo quando eles repousam sobre nossa mãe. Sabes que é loucura o que imagina, não sabes? Não faça tamanha loucura, e nem exponha ao opróbrio a honra de nosso pai. O pecado jaz a porta e o teu desejo é contra você. É sua responsabilidade dominá-lo.
Abel chama as ovelhas e continua com a jornada, sem assoprar a flauta dessa vez. Caim fica impotente diante da descoberta do irmão. Sente-se tão indefeso que o coração aos pulos o leva sentir uma forte raiva. Então decidi cumprir o objetivo para o qual subiu a colina. Aonde pisava havia pedregulhos ocultos pela relva – ele sabia que nesse ponto havia um meio tão sólido quanto sua certeza em machucar. Escolhe um pontiagudo e vai correndo em direção a Abel. Acerta-o na nuca, antes desse se virar. Abel cai no chão, o que espanta as ovelhas que se dispersam pelo caminho. O coitado fica se revirando no chão, gritando ai e sugando a saliva de tanta dor. Caim, ofegante, senta sobre as costas do irmão, prendendo as mãos da vítima com os joelhos, e começa a bater com a pedra na nuca dele. Os miolos explodem no rosto de Caim; selvagem, continua a bater, descarregando a raiva de se sentir excluído durante anos. Depois que a cabeça de Abel se tornou um pedaço de carne derretido, Caim se levanta e joga a pedra. Começa a chorar e gritar alto, puxando os cabelos e chutando o chão. Passada a catarse emocional, sentou-se sobre a relva, taciturno, e ficou pensando um pouco enquanto o sangue secava sob seu rosto.
Enterrou o cadáver de Abel debaixo de um carvalho. Pôs a flauta sob o monte de terra. Guiou as ovelhas até o celeiro, ao lado da tenda, depois de ter lavado o rosto no riacho.
– Onde está seu irmão?
– Não sei pai. Não sou tutor do meu irmão.
– E essa mancha de sangue na cintura?
– Me machuquei.
– Pelo menos você viu o seu irmão por aí?
– Já disse que não sei onde ele está e nem o vi hoje.
– Do mesmo modo que você se machucou não é?
– Me deixe em paz velho.
Caim desce até a sua tenda. Ajambra seus pertences sobre o jumento e parte sem rumo.
À noitinha, acampa perto de um bosque. As colinas no horizonte parecem chocalhos, envoltos em estrelas e banhados pelo luar. Depois de comer algumas hortaliças ao redor da fogueira, deita-se sobre uma manta e fica contemplando o bruxulear da chama. A tristeza lhe dá sono, e a culpa o faz sonhar.
Rostos de ovelhas povoam o céu. Os olhos delas, negros como azeitonas, estão sobre ele. Caim enxerga tudo ondulante, como se estivesse dentro de uma fogueira. Então a multidão de rostos começa a falar em uníssono:
– Onde está seu irmão Abel? O sangue dele clama a mim desde a terra.
– Não sei onde ele está. Acaso sou tutor do meu irmão?
– Por ter derramado o sangue de teu irmão, porei um sinal sobre ti. Andarás errante sobre a terra e maldito será aquele que te matar.
As bocas que falaram se abrem agora e do interior delas sai um fogo. Caim é marcado por uma chama que queima na sua testa. Ele cai prostrado de dor. Após a ardência, se levanta e vê Abel com uma coroa e uma espada, sorrindo como sempre.